Pronome neutro, linguagem não-ofensiva e politicamente correto: novas formas de censurar o que você tem a dizer

Foi em Babel, segundo a tradição, que os homens foram condenados ao eterno desentendimento. Talvez tenha sido um pouco antes – quando Adão dava nomes no paraíso, é certo que Eva tenha discordado de algum deles. Força divina ou não, a língua sempre foi uma torre de marfim que nos dificultou chegar uns aos outros.

Se tecnologia inventada, instinto biológico ou (quem sabe?) até presente divino, a resposta continua murmurando sozinha nos confins da mente. Fato é, ela nunca esteve tanto em debate, nas mídias e nos projetos ideológicos como hoje. Pronome neutro, politicamente correto e linguagem não-ofensiva são as blasfêmias desse século.

Basta intentar uma palavra do códex que você será cancelado. Mas por que isso funciona assim? Será que mudar palavras vai mudar nossos hábitos e entendimento do mundo? Como diria Magrite, “isto não é um cachimbo”. A representação da coisa não é a coisa. Mas por que é tão importante discutir a linguagem? Qual o problema de usar uns pronomes diferentes?

Para responder isso temos que fazer um tour pela história. Ao menos desde os gregos, pelo que sabemos, a língua foi a musa de grandes debates filosóficos

Um diálogo de grego

Sócrates vinha andando pela pólis enquanto juntava pensamentos. De repente, viu dois de seus discípulos discutindo – eram Crátilo e Hermógenes.

“O que há?” – perguntou-lhes o mestre. “Estamos em um debate filosófico”, respondeu um deles estufando o peito de orgulho. Como explicou, era uma discussão sobre a natureza das palavras, haveria algum motivo para as coisas terem seu nome ou seria aquilo apenas uma convenção?

– Esse nome ele não pode carregar! – esbravejou Crátilo – “Hermógenes” quer dizer “o filho de Hermes”, como um pobretão desses pode se chamar filho de Hermes?!

Hermógenes tem a réplica. Escolhe bem as palavras, coça a cabeça e declara: as coisas só têm seus nomes porque assim concordamos! Acreditar que existe um motivo metafísico para chamarmos algo pelo seu nome seria absurdo!

Platão anotava aquilo tudo da sombra de seu mestre – mais tarde o diálogo seria publicado com o nome de “Crátilo”. Eles não sabiam, mas aquela conversa problematizando o nome de Hermógenes seria a semente de uma ciência muito frutífera, e com muitos ramos diferentes, chamada linguística.

O debate atravessou o tempo, e quem leu “O nome da Rosa” sabe que falar as palavras e ler os livros certos era importantíssimo para continuar vivo. Na obra de Umberto Eco, a evidência se dobra sobre a Querela das Universais. Um importante questionamento iria surgir de Pedro Abelardo neste período: “se todas as rosas do mundo sumissem, a palavra rosa ainda teria esse significado?”. Eram ecos do debate platônico que ainda ressoavam na Idade Média.

Aliás, não faz tanto tempo assim… hoje mesmo estamos repletos de discípulos de Crátilo dizendo o que podemos dizer ou como devemos nos chamar.

A virada linguística de Wittgenstein

Wittgenstein era um cara, por assim dizer, estranho… herdeiro de uma das maiores fortunas da Áustria, o filosofo se desfez de tudo para trabalhar como jardineiro em um mosteiro. Ele era primo de Hayek, e como o economista, foi perseguido pela ascendência judaica pelos nazistas. Depois de retornar à ciência, revisou toda sua teoria até conseguir se “auto-refutar”.

Acima de tudo, Ludwig Wittgenstein era um homem confuso, que muitas vezes não se deixava ser entendido. Talvez por esse isolamento em uma mente genial ele tenha dedicado sua vida à ciência da lógica e da linguagem.

O “segundo” Wittgestein (depois de revisar toda sua teoria), autor de “Investigações Filosóficas”, vai virar o foco do estudo filosófico de ponta cabeça. O austríaco reinterpreta os conceitos linguístico-lógicos desde Platão para colocar a linguagem como peça importante do grande tabuleiro da realidade: era o nascimento dos “jogos de linguagem”.

Wittgenstein vai mostrar que “falar” é muito mais que dar nomes aos objetos, como fez Adão no Éden. A linguagem passaria por um grande filtro subjetivo e contextual para poder ter uma relação com a realidade. Muito abstrato? Aqui vai um exemplo:

Pense que você está falando com um amigo seu sobre um jogo que assistiram. Um jogo pode ser de muitas coisas: basquete, futebol, baralho…, mas todos têm algo em comum que faz a “essência” do jogo, certo? Bem, mais ou menos.

Depois disso você vai para casa. Na rua, há vê uma criança jogando sozinho com uma bola. Mas um jogo não deveria ter uma competição – quem vai ganhar nesse esporte de um homem só?!

Na cozinha, a sua mãe o espera animada. Ela quer mostrar o jogo de panos de prato novinho que ela comprou. Esse novo jogo nada mais é que um conjunto de tecidos que nada tem a ver com uma competição. A conversa flui, ela pergunta como estava seu amigo. Você relata que ele estava meio estranho, algo deve estar acontecendo por trás disso. “Ele estava escondendo o jogo…”

Aliás, a palavra jogo em jogo de linguagem não se encaixaria em nenhum desses conceitos. Ele está muito mais para um acordo linguístico de conceitos e regras compartilhados. Para eu entender, tenho que estar “falando a mesma língua”, ou estar no mesmo jogo.

As palavras, para Wittgestein, muito mais fazem que apenas dão nomes a coisas tangíveis ou abstratas – é uma forma de interpretar o mundo! Sobre isso ele diz que

“Quando os jogos de linguagem mudam, há uma modificação nos conceitos e, com as mudanças nos conceitos, os significados das palavras mudam também.”

Para duas pessoas se entenderem, elas devem estar no mesmo jogo de linguagem. Portanto, com Wittgenstein, fica claro que a interpretação do mundo (a linguagem) não é o mundo (a realidade). A área linguística que vai estudar o significado das palavras segundo seu lugar e momento é a pragmática.

Vale também lembra que, apesar de Wittgenstein admitir que as palavras mudam seus significados, isso ocorre pela ordem espontânea das coisas, não por acordos ou imposições ideológicas.

A linguagem “não-ofensiva”

Por que falamos de tudo isso? Pergunta nesse momento o leitor. Para chegar ao mais importante questionamento atual: O que falamos moldam nosso jeito de ser? Pensamos apenas aquilo que nossas palavras conseguem dizer?

No século XIX, muitos intelectuais, entre eles William Gladstone, trouxeram a público uma descoberta insólita: os antigos não conseguiam ver cores! – ou, ao menos, as mesmas cores que vemos hoje.

O óbvio (na época não tão óbvio) foi trazido à tona pouco tempo depois por Lazarus Geiger. Os órgãos visuais dos gregos (fora de Homero, que era cego) tinham funcionamento tão perfeito quanto os do homem moderno. Ele chegou à conclusão após observar que outros textos antigos. Rudolf Virchow comprovaria o mesmo “daltonismo linguístico” em tribos africanas no zoológico de Berlim. Mas, mesmo assim, conseguiam diferenciar objetos azuis de outros objetos.

Os africanos e (muito provavelmente os gregos) classificavam o azul como um tom de verde ou preto, e tudo bem com isso! O que queremos dizer com preto, não é sentido literal nesse caso, mas uma coloração escura (sentiram a sutileza das palavras?). A cor “laranja” só foi inventada na língua de Camões no século XIV. Navegantes árabes traziam pela primeira vez a fruta ácida de cor naranj, que logo caiu no gosto e na língua dos povos ibéricos. É difícil de acreditar que antes disso nossos ancestrais lusitanos fossem daltônicos e não pudessem distinguir uma laranja de uma maçã.

Da mesma forma, o uso genérico do masculino na língua portuguesa não quer dizer que os falantes modernos de português sejam “daltônicos” às diferentes formas de gênero e orientações sexuais. Eis que chegamos no “pronome neutro”.

A ideia de que criar uma classe de pronomes na língua portuguesa têm motivos muito compreensíveis. Da mesma forma, a linguagem politicamente correta. Através da linguagem, reduzir certos preconceitos e violências simbólicas[1] da sociedade. Mas não é mudando “significantes” (imagem acústica, no jargão linguístico) que variações significativas no “significado” (signo linguístico) e relação ao “referente” (objeto de que se fala) ocorrerão. Vamos usar uma metáfora econômica.

Imprimir mais moeda não quer dizer gerar mais riqueza. Uma cédula é apenas uma representação “abstrata” de valor. O papel que carrega o algarismo 100 representa uma riqueza (serviço, produto) no valor estabelecido de 100 unidades. O papel em si não vale aquilo que está sobre ele. Portanto apenas imprimir duas notas com o valor de 100 (sem de fato produzir valor) não quer dizer que a riqueza foi aumentada em 200. O resultado disso já conhecemos, a inflação sobe por um motivo…

Seria errado dizer que “inflacionamos” as palavras, mas os resultados podem ser tão desastrosos quanto. Falar “elu”, “menine”, ou se negar a falar “criado mudo”, não vai mudar o “valor” real daquilo. Muito pouco se vai ajudar de fato no combate a um sexismo ou racismo impregnados na sociedade. Quer algum exemplo prático?

O turco é uma língua interessante. Além de uma flexão absurda de casos, o idioma coloca o verbo no fim das frases e possui só uma palavra para dizer “ele” e “ela”. É uma língua sem distinção de gênero. Para se referir tanto a ele, quanto a ela, se usa a palavra “o”. Para eles e elas o pronome é “onlar”. Uma língua que não distingue homens e mulheres deveria ser a norma idiomática de um país de igualdades, não é mesmo?

A Turquia é um dos países que mais mata mulheres no mundo. O que aconteceu para que um local com uma língua de tal estrutura lógica leve a isso? Alguns séculos de Islã radical deve ser a resposta.

Já em Luxemburgo temos um caso também curioso. A língua de origem germânica não só tem o gênero masculino e feminino, como também uma categoria inteira para o gênero neutro. Contudo, aqui vemos uma particularidade. Para se referir a uma mulher pelo primeiro nome, o pronome e artigo utilizados não são os do gênero feminino (si; d’), mas o do gênero neutro (hatt; dat). Nem por isso a língua luxemburguesa oprime as mulheres e as “coisificam” (o que pode vir a fazer isso é a cultura).

Em uma linguagem com lógica impecável, esse fenômeno seria impossível! Mas como muito bem mostrou Wittgenstein, as palavras são apenas um espelho para compreender o mundo, não ele próprio.

Deve-se olhar ainda para a língua dos Gurr-goni, uma tribo aborígine da Austrália, para compreender a imensidão interpretativa da linguagem. Os Gurr-goni não têm apenas classes de gênero de masculino e feminino. Eles vão muito mais além: são classes para objetos longos, bebidas, coisas perigosas, plantas e vegetais comestíveis.

Por incrível que pareça, a palavra avião, uma grande máquina com couraça de ferro, é posta na classe de “vegetais comestíveis”. (Não foi informado se o sindicato dos aviões realizou protesto contra essa violência simbólica irreparável). Para entender esse fenômeno, recomenda-se ler o livro The Unfolding of Language (p. 269), de Guy Deutscher.

Conclusões

Como já mencionado, este artigo não pretende discorrer as construções históricas de um latim vulgar ao português culto. Para isso, os artigos da professora Lara Brenner são uma excelente viagem no tempo.

O que propomos pôr em discussão foi a matéria-prima de um discurso. A “lógica pragmática” talvez seja uma das melhores explicações. Não há motivos para uma palavra ser usada, a não ser que todos concordem com isso. Se nossa língua fosse uma matemática perfeita, é provável que os significados fossem rígidos, engessando qualquer forma de entendimento pelo purismo semântico.

Por que existe tanta gente, então, que deseja pôr palavras na sua cabeça e comandar o que você pensa?! Na verdade, muitos dos militantes não fazem ideia! Para eles, a linguagem molda o mundo em todas suas particularidades e amargura – quando não é bem assim. Eles estão mais para Crátilos, dizendo que não podemos carregar nossos nomes por não significar exatamente aquilo que somos.

Estava na época em debate um projeto de lei para obrigar a se utilizar essas construções “pirateadas” no uso corrente. Melhor não explicar muito mais… nunca se sabe quando um magistrado com “excelentes sentimentos” vai achar que isso seria uma boa ideia por aqui.

Uma sugestão para resolver isso: tenhamos paciência. Ninguém muda sua opinião de uma hora para outra ou porque leu um extenso artigo. Opiniões mudam com paciência e uma boa dose de boa argumentação. E vale a pena lembrar – não é porque não se concorda com uma linguagem “não-ofensiva” que se deve fazer exatamente o contrário. Ser racista, homofóbico ou um babaca não é uma atitude de resistência, é um suicídio assistido. Isso em nada vai ajudar na construção de uma linguagem e sociedade livres

Notas e Referências

Uma Breve História da Filosofia, Nigel Warburton, p. 218-223

The Unfolding of Language, Guy Deutscher

Through the language glass, Guy Deutscher

Sobre o uso do gênero neutro no luxemburguês: https://orbilu.uni.lu/bitstream/10993/41907/1/Hatt%20or%20si_STUF_Martin.pdf

Sobre o diálogo de Crátilo: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/filosofia-da-linguagem-2-as-palavras-e-as-coisas.htm

[1] Teoria evolutiva defendida por Jean-Baptiste Lamarck – ele acreditava que características adquiridas em vida eram repassadas às gerações seguinte. A ideia era muito bem aceita, até Darwin vir com a seleção natural.

[2] Conceito pelo filósofo Pierre Bourdieu

Postagens Relacionadas