Por Derick Azevedo

 

Vivemos a “era dos Bancos Centrais”: as autoridades monetárias intervêm na economia de modo jamais visto na tentativa de anular os ciclos econômicos naturais em busca da utopia de eterna bonança e expansão. Dessa forma, as ferramentas de injeção de liquidez e crédito são utilizadas banalmente e de modo irresponsável em nome do desenvolvimento e da correção dos “problemas de livre mercado”.


Parte III – A Crise de 2008

 

Como explicado em nosso artigo sobre os ciclos da economia, os períodos de profunda recessão econômica são causados pela má alocação de capital. Isso gera uma disfunção na curva de oferta e demanda. Sendo assim, investimentos errados são resultado de decisões individuais ruins, que normalmente são tomadas considerando um sistema de preços já distorcido pela ação estatal. 

 

Em suma, quanto maiores e mais duradouros os erros, maiores e piores serão as consequências. No entanto, na história da humanidade, poucas vezes houve tantos erros de investimentos e alocação de capital quanto na bolha imobiliária que gerou a grande crise de 2008. No epicentro dessa crise, símbolo de extraordinária incompetência, podemos ver que a manipulação econômica foi produzida pelo FED e pelo governo dos EUA.

 

O início da bolha

 

O mercado imobiliário americano era relativamente estável até a década de 70, quando houve um surto inflacionário que praticamente dobrou os preços dos imóveis no período. Porém, foi no governo Clinton em 1993 que os preços começaram a sair do controle definitivamente, em razão de políticas públicas irresponsáveis que foram protagonizadas por duas empresas “privadas”.

 

Fannie Mae e Freddie Mac foram duas empresas criadas pelo Congresso Americano em 1970 com o objetivo de aumentar a liquidez do mercado imobiliário, facilitando empréstimos e movimentando o setor. No papel, eram duas empresas privadas; na realidade, foram criadas pelo Estado, tinham privilégios garantidos e estavam sob forte influência e controle dos políticos. Em resumo, estavam presentes todos os elementos de incentivo a uma gestão irresponsável, típica das estatais, e distante da lógica de livre mercado.

 

Essas empresas compravam os empréstimos dos bancos. Em outras palavras, elas adquiriam a posição que antes era ocupada pelas instituições financeiras (credores) na relação com as pessoas devedoras. Por exemplo, se um cidadão americano comum pegar um empréstimo em algum banco comercial, esse banco credita o valor emprestado na conta do cidadão. Em troca, o banco ganha o direito de receber o valor emprestado com um acréscimo (os juros) após um determinado período, o que aumentará os ativos do banco. 

 

No sistema de reservas fracionárias, o banco pode emprestar muito mais do que seu patrimônio líquido permite (os valores em depósito corrente possuídos pela instituição). Desse modo, os bancos poderiam “criar dinheiro” e conceder empréstimos à vontade. Por questões regulatórias, porém, a concessão de empréstimos foi limitada pela proporção do ativo em relação ao patrimônio real dos bancos. É aí que Fannie Mae e Freddie Mac entram.

 

Como as duas empresas compram dos bancos o direito de receber de volta o empréstimo do cidadão, pagando ao banco o valor original emprestado com um adicional, este processo permite que o limite regulatório seja “burlado”. Com a venda do empréstimo, o ativo do banco aumenta e há maior liquidez. Isso permite que eles concedam muito mais empréstimos (o que de fato aconteceu), aumentando a demanda do setor e provocando a elevação dos preços.

 


O gráfico acima mostra a evolução dos preços de venda de novas casas nos EUA. Percebemos uma forte tendência de crescimento desde o início dos anos 90 – e um aumento a partir de 2001.

 

O que Fannie Mae e Freddie Mac faziam com os empréstimos adquiridos? Pois bem. As empresas vendiam esses empréstimos como investimentos no mercado secundário, sobretudo para bancos de investimentos, já que elas tinham uma linha de financiamento especial no Tesouro dos EUA – algo muito atrativo, pois, em caso de calote do empréstimo, o governo estaria lá para cobrir.

 

As exigências dos bancos para concessão de crédito diminuíram, o que atraiu pessoas com maior probabilidade de dar calote. Todo esse processo gerou um grande incentivo para decisões equivocadas de investimento e capital e, consequentemente, para a má alocação de recursos. Porém, por si só, isso não era capaz de formar uma crise tão grande como a de 2008. Outras políticas públicas agravaram e geraram enormes problemas.

 

Por serem empresas apadrinhadas pelo governo americano, seu uso para fins políticos era comum. 

 

Durante os anos 90, diversas agências e grupos políticos iniciaram movimentos de pressão para que o setor bancário aliviasse as regras de concessão de crédito. O objetivo era obrigar os bancos a fazerem concessões sem poder checar o histórico do tomador, sua renda e mensurar corretamente o risco da operação, sob o risco de serem multados e processados por preconceito ou discriminação.

 

Em nome da “igualdade”, a CRA (Community Reinvestment Act.), uma lei dos anos 70, foi novamente aplicada com forte intensidade. Basicamente, a lei determinava que um banco só poderia realizar uma expansão das suas operações e negócios caso tivesse feito um número suficiente de empréstimos a minorias e pessoas de baixa renda em geral. 

 

O governo reduziu todos os critérios para empréstimos e forçou os bancos a fazerem péssimos negócios com pouca ou nenhuma segurança. Além de economicamente inconsequente, essa medida é uma clara violação aos princípios da isonomia e liberdade econômica.

 

Com esse cenário de grande liquidez e crédito fácil, a especulação foi incentivada devido ao aumento considerável de preços no setor. Se tornou muito rentável tomar um empréstimo, comprar um imóvel, fazer pequenas reformas e revendê-lo a um preço muito maior. No entanto, isso só é possível com preços em ascensão, juros baixos e empréstimos fáceis. Formou-se, então, a chamada “bolha imobiliária”.

 

Outro fator determinante para o crescimento da bolha imobiliária foram as agências de classificação de risco (Moody’s, Fitch e Standard & Poor’s) que, como o próprio nome diz, davam “notas” pela segurança e qualidade dos ativos vendidos. 

 

Fannie Mae e Freddie Mac juntavam e vendiam, para bancos e investidores de todo o mundo, títulos de empréstimos que eles compravam dos bancos, empréstimos bons e ruins (de maus pagadores), devido a motivos já explicados. Essas agências concediam classificação máxima para os ativos vendidos pelas duas empresas, espalhando para o mundo todo os denominados “ativos podres”, oriundos das más decisões de investimento. O resultado disso é que houve um aumento exponencial do agregado de má alocação de capital. 

 

O detalhe é que essas agências de classificação, como Moody’s, Fitch e Standard & Poor’s, cometeram erros graves e intencionais: essas empresas têm reserva de mercado graças às regulamentações do FED para o setor. Sendo assim, foi fácil ignorar a realidade e agir a favor do sistema.

 

Concomitantemente, e principalmente nos anos 2000, o FED alterou as taxas de juros e expandiu a base monetária, permitindo e alimentando o grave cenário. A imagem transmitida era de prosperidade e crescimento do setor.

 

As medidas que facilitaram a tomada de empréstimos por potenciais inadimplentes e distorceram as exigências para concessão de crédito, somadas com a proteção e privilégios das empresas Fannie Mae e Freddie Mac, deslocaram o capital e o dinheiro criado pelo FED para o setor imobiliário de modo artificial. As agências de classificação contribuíram para que os títulos e ativos podres fossem espalhados para o mundo todo. Bancos americanos e conglomerados financeiros se “contaminaram” com a onda de decisões extremamente erradas.

 

O fim do sonho americano 

 

O “sonho americano” começou a ruir quando as taxas de juros começaram a subir em meados de 2004. Com a economia americana recuperada da recessão de 2001, e visando o controle da inflação, a taxa básica de juros foi de 1% para mais de 5% em 3 anos. Isso esfriou o mercado imobiliário, ocasionando queda na demanda por imóveis, estagnação dos preços e paralisação da especulação. 

 

O número de calotes e inadimplência aumentou consideravelmente. Com a taxa de juros maior, a tomada de empréstimos e pagamento de dívidas se tornou inviável. Maus pagadores, que já vinham dando prejuízo para o sistema, pioraram a situação. Os “bons pagadores” também se viram endividados e sem possibilidade de cumprir com suas dívidas. Estima-se que entre 2005 até 2008, os calotes foram de US$ 20 bilhões para US$ 170 bilhões.

 

Esses fatos deram início ao pânico no mercado, consequência esperada da confrontação das más decisões com a realidade. Começaram as corridas aos bancos, como o Lehman Brothers, um dos primeiros a falir. Diversas instituições financeiras, empresas de serviços financeiros e seguradoras enfrentam severos problemas. O mundo todo entrou em crise. 

 

Com a crise, uma das principais medidas tomadas pelo FED foi a compra dos títulos subprime (inadimplentes ou ativos podres), securitização e valores mobiliários. Com isso, o governo tomou para si os ativos ruins e promoveu liquidez ao mercado. Essas compras foram lastreadas por rodadas de quantitative easing que, entre 2009 e 2010, somaram mais de US$ 2 trilhões. O governo americano também promoveu a estatização oficial das empresas Fannie Mae e Freddie Mac – na prática, elas sempre foram do Estado.

 

Como toda essa expansão monetária não resultou em uma hiperinflação ao consumidor? Existem 3 principais fatores que podem explicar. 

 

O primeiro são as reservas em excesso. Basicamente, é a parte da liquidez que o banco central concede aos bancos e que não é convertida em crédito real para a economia, mas fica em “estoque” recebendo uma boa remuneração por parte do governo. Na prática, o FED salvou as instituições financeiras com dinheiro “criado do nada” e, para não causar inflação, recompensa até hoje o estoque desse dinheiro. 

 

Outro fator consiste no fenômeno da exportação de inflação. Como o dólar é a principal moeda mundial, muitos países, principalmente aqueles que têm economia e moeda fracas, como o Brasil, possuem suas reservas em dólar. Com a injeção de liquidez e aumento da oferta da moeda, o dólar tende a se desvalorizar, o que geraria inflação nos EUA, e uma valorização na moeda local – o que, porém, na lógica dos Estados, prejudicaria as importações. Assim, os bancos centrais atuam inflacionando a própria moeda para manter o equilíbrio. 

 

Por fim, como a liquidez criada se direcionou para o mercado acionário, houve uma inflação nos preços dos ativos do mercado financeiro e não diretamente ao consumidor. O gráfico abaixo mostra com a linha azul a expansão da base monetária americana desde 2008, e com a linha vermelha a evolução das reservas em excesso.



Os cidadãos americanos estão literalmente financiando essa política que é um forte instrumento de transferência de renda. Quem cria a conta para servir aos próprios interesses é o Estado, mas quem paga são os indivíduos. Bilhões de dólares foram mal alocados em empreendimentos imobiliários que não deveriam ser construídos, gerando bairros inteiros com prédios e casas desocupadas.

 

Os preços dos imóveis subiram, o que dificultou a vida do cidadão comum de baixa renda, o qual o governo dizia querer ajudar com as políticas de afrouxamento de crédito. A produtividade fica estagnada e os impostos são aumentados para o pagamento das dívidas tomadas. 

 

Governos de diversos países aumentaram seus poderes e justificaram maiores taxações, intervenções e programas sociais com base na absurda e mentirosa justificativa de que a falta de regulação foi a causadora da bolha. Desde então, boa parte das economias mundiais têm sido artificialmente estimuladas – com más decisões que certamente terão seu preço futuro. 

 

O ponto central é que o governo, na tentativa de reduzir as desigualdades sociais, provocou um aprofundamento e expansão da desigualdade, como explicado em  outro artigo. A crise nos deixou uma herança ideológica péssima: muitos jovens acreditam que o “capitalismo” é o responsável pela crise e que, por sua causa, surgem sistemas que privilegiam os amigos do governo. Apesar de absurdo, esse pensamento está na gênese da crise: somente o Estado poderá resolver nossos problemas e, quando crises acontecem, elas são reações do capitalismo.

 

Podemos mostrar que não é da natureza do livre mercado a coerção e a manipulação econômica por autarquias e nem a socialização dos prejuízos, como feito pelo FED. O livre mercado é um processo contínuo de liberdade individual e responsabilidade individual: cada um obtém o sucesso pelo que gerou de valor a outros indivíduos, mas também é responsável pelas próprias decisões – certas ou erradas.


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