É curioso pensar que no Brasil, ser político é profissão e não simplesmente uma ocupação temporária. Não que não seja assim em outros países, mas nós conseguimos dar a isto uma dimensão catastrófica em que a “profissão político” chega a ser hereditária (observe o caso dos Sarney, que aparentemente tem a vocação política no sangue). Os cargos públicos no Brasil possuem dimensão de patrimônio, ou seja, há um sentimento de domínio privado sobre o mesmos, como se os cargos pertencessem, legitimamente, à certas pessoas, que se tornam assim donas da máquina pública. Aspira-se a ascensão à “classe política” dá mesma forma que há aspiração dos pobres de ascender à classe média.

Há mais de meio século, Raimundo Faoro, um notável jurista e historiador brasileiro escreveu Os Donos do Poder, livro em que aborda a questão do patrimonialismo na política brasileira desde suas origens ibéricas até o século XX, e mostra que a formação e o fortalecimento do que costumamos chamar de “Classe Política” brasileira encontra precedentes na história da formação do Reino de Portugal, no século XI, quando já era difícil discernir, nas mãos da monarquia, entre aquilo que era público e o que era privado no ambiente político português, que foi herdado pelo Brasil colônia e plenamente instalado por aqui com a translocação do aparato estatal português após 1808.

Em um trecho imperdível de sua obra Faoro distingue o Estado Português dos Estados modernos que nasceram a partir da crise do feudalismo e afirma que, “patrimonial e não feudal o mundo português, cujos ecos soam no mundo brasileiro atual, as relações entre o homem e o poder são de outra feição, bem como de outra índole a natureza da ordem econômica, ainda hoje persistente, obstinadamente persistente. […] o soberano e o súdito não se sentem vinculados à noção de relações contratuais, que ditam limites ao príncipe e, no outro lado, asseguram o direito de resistência, se ultrapassadas as fronteiras de comando. Dominante o patrimonialismo, uma ordem burocrática, com o soberano sobreposto ao cidadão, na qualidade de chefe para funcionário, tomará relevo a expressão. Além disso, o capitalismo, dirigido pelo Estado, impedindo a autonomia da empresa, ganhará substância, anulando a esfera das liberdades públicas, fundadas sobre as liberdades econômicas, de livre contrato, livre concorrência, livre profissão, opostas, todas, aos monopólios e concessões reais.”

Criou-se com a absorção pelo Estado da nobreza e mais tarde dos grupos de interesse político e econômico um estamento burocrático que – já que o capitalismo laissez-faire não encontrou espaço fértil no patrimonialismo brasileiro – se encarregou de controlar a economia e boa parte dos aspectos da vida no país. Com a experiência da monarquia constitucional e, posteriormente, da república, o estamento burocrático se torna de fato o próprio Estado, com todas suas atribuições e todo seu poder e vontade de regular tudo e todos.

De certo, podem ser vistas na história política brasileira movimentações no sentido da descentralização e delimitação do poder Estatal, partindo sobretudo dos ilustrados liberais no século XIX, porém estas movimentações foram tímidas e encontraram vasta resistência em diversos setores do país.

A questão vai muito além do fato de que certas figuras políticas no Brasil possuem cargos vitalícios. Isto é apenas um sintoma de um problema maior: O cenário político brasileiro mantém um sentimento de “casta política” que, quando no poder, se sente dona-proprietária do Estado e sente que os servos (que convencionou-se chamar de cidadãos após a Revolução Francesa) estão à serviço de seus interesses.

À todos aqueles que tem noção do caráter patrimonialista do Estado, causa constrangimento ouvir o governo ou a mídia afirmarem que a democracia encontra-se consolidada no país. Esta “classe política” mantém sua influência mesmo no recente processo de construção da democracia por meio de práticas centenárias, se adaptando à atualidade ao ponto de fazer largo uso dos meios de comunicação e da legitimação do poder por meio de migalhas e políticas assistencialistas distribuídas aos mais pobres e o sangramento de dinheiro público nas mãos das pessoas certas.

A dita “classe política” está tão enraizada no modo com que pensamos o Estado que sua perpetuação e legitimação ocorre na mídia, na iniciativa privada, nas escolas, nas universidades, nos sindicatos e também dentro das casas dos brasileiros, como prática cotidiana e inquestionável. O que não é tão assustador se considerarmos que todos estes setores são historicamente regulados e sofrem influência direta do Estado de diversas formas. Daí concluirmos que se trata de um processo retroalimentado e que entra para o vasto hall de práticas nefastas do Estado brasileiro, e que a esquerda, já no poder, vem aprendendo rápido a respeito das tradições políticas que lhes são de serventia.

É extremamente necessário que nós liberais trabalhemos para desnaturalizar e desmontar ideologicamente a “classe política” no cenário brasileiro, pois certamente o interesse em manter e expandir o Estado autoritário e agigantado que existe para manter o poder nas mãos destas pessoas, sobretudo quando o poder se fantasia de redentor justiceiro, é algo que não deve ser subestimado, ainda mais se considerarmos que o processo de dominação ideológica encontra-se mais avançado do que nunca.

Se em outros países a defesa do liberalismo é importante, no Brasil é questão crucial e urgente.

Vinícius Motta é graduando em História pela UFSM. Escreve todas as terças para o site do Clube Farroupilha.

As informações, alegações e opiniões emitidas no site do Clube Farroupilha vinculam-se tão somente a seus autores.

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